Yan permaneceu imóvel como uma estátua, sua mente e seu corpo como de uma estátua, fechado e vazio.
Caleb caminhou até estar a menos de um metro dele, os olhos acinzentados do outro vampiro desceram até ele enquanto ele apoiava as duas mãos sobre a bengala de prata. Aquele desgraçado sabia cada fraqueza dele.
- Lhe dou as boas vindas à minha casa – o vampiro disse, fazendo um arco no ar com a mão.
- Obrigado – Caleb limitou-se a dizer – Não pretendo ficar muito. Apenas vim alertar-lhe sobre minha presença e de três criados pouco comuns entre nós, são três lobisomens, mas os atos dele serão como meus atos então nada deve temer.
Yan ergueu uma sobrancelha surpreso e então sorriu de lado.
- Você sempre me surpreende jovem Murdock, sempre e dessa vez não foi diferente obviamente – ele disse, tornando a apoiar a mão em sua bengala – e o cheiro doce que o acompanha? Uma nova humana?
- Uma cortesã que contratei para me divertir – ele disse, sorrindo de lado também. Ele jamais poderia deixar que Yan suspeitasse de Anise, jamais – Sabe de meu noivado com Juliette não? Creio que tenha o convite, então sabe que logo não poderei me divertir como antes – Caleb sabia que era inútil, mas ele estava cumprindo o protocolo.
- Claro perfeitamente compreensível – Yan Yuriev sorriu novamente – E claro que em agradecimento ao seu convite quero que fique em minha casa essa noite, gostaria que conhecesse o mais novo membro de minha família, minha doce Ruri.
Caleb o olhou por um longo tempo. Recusar o convite seria levantar suspeitas, aceitar o convite seria assinar sua sentença.
- Seria um prazer, em outro momento, estava eu agora indo caçar – Caleb se desculpou.
- Ora, mas cheira a sangue fresco – Yuriev fechou os olhos e inspirou – Um cheiro muito bom – ele passou a língua pelas presas e Caleb se segurou para não avançar no pescoço daquele maldito – Então irei com você, não pode negar que lhe acompanhe na caça em meu próprio território.
- É claro, eu não ousaria – Caleb respondeu prontamente. Ele não sabia se as memórias de Yuriev eram tão vivas quanto às suas, mas ele não arriscaria de qualquer modo. Thierry o havia reconhecido quase que no mesmo instante em que colocara os olhos sobre ele e também havia reconhecido Anise.
- Então venha, há um lugar onde podemos conseguir todo o sangue que quiser – Yuriev se virou e então começou a caminhar.
Caleb limitou-se a segui-lo, procurando pensar somente na criada que acabara de fazer sua, seus pensamentos ignoravam Anise como se ela sequer existisse e ignoravam os comentários de Yan sobre a invasão do império russo. Talvez Yuriev só estivesse fazendo um teste e ele não cairia assim. A família Yuriev era muito conhecida por cometer os maiores crimes entre a sociedade vampírica e passar impune. Eles faziam suas vítimas assumirem a culpa por suas próprias sentenças, por isso era um clã com muitos poderes.
Yan Yuriev o guiou até um coche, que parecia preparado para recebe-los, os cavalos negros fazendo os pelos da nuca de Caleb se arrepiarem. Ele não tinha boas memórias sobre cavalos, eles haviam ajudado Thierry a mata-lo da última vez, na verdade apenas um como aqueles, negro como a noite.
- Algo o incomoda? – Yuriev estava atento aos menores detalhes – Não aprecio muito andar em meio ao povo, sabe, existem muitos riscos para aquele que são como nós... – Yan subiu ao coche e então se sentou chamando por Caleb.
- Nada, apenas estou observando, você tem belos cavalos – Caleb subiu e então se sentou de frente para Yan, os olhos do outro vampiro estavam quase semicerrados e ele tinha um sorriso que retorcia seus lábios levemente nas extremidades, na verdade não se podia dizer ao certo se ele estava sorrindo.
- Sua família também, seus estábulos sempre foram cheios com os melhores corcéis – o vampiro albino comentou, o sorriso aumentando.
- Sim, eu não disse que não temos, apenas comentei – Caleb retrucou rapidamente, não seria nada bom que Yuriev começasse a falar sobre os Murdock.
- Claro, claro – Yuriev se inclinou para frente – Parta homem – ele ordenou ao cocheiro e logo eles ouviram as rédeas batendo contra o lombo dos animais.
- Perdoe-me, mas para onde estamos indo? – Caleb perguntou, já imaginando a espécie de antro ao qual Yuriev poderia leva-lo.
- Minha casa – ele respondeu tranquilamente – Quer sangue e eu quero que conheça minha família, como disse que dispõe de pouco tempo, apenas o necessário para caça resolvi poupá-lo e leva-lo então para lá. Lá terá o sangue que quiser e ainda sim poderá conhecer meus amados pais.
- Eleazar e Selena estão na cidade? – Caleb tentou esconder o desagrado, deixando a expressão vazia, mas ele temeu que seus lábios franzidos demonstrassem o quão tenso ele havia ficado com aquela revelação.
- Sim, vieram ver Ruri, mamãe sente muita falta dela, mas Ruri se apegou muito a mim – Yan não estava só levando Caleb para seu ninho, mas havia enchido ele com as piores serpentes. Era tarde demais para saltar – Isso o incomoda? – Yan perguntou ao ver Caleb olhando pela janela, a expressão agoniada.
- De modo algum, só acho não estar vestido de acordo com a ocasião – Caleb disse, passando a mão pelo rosto e respirando fundo.
- Não diga besteiras, nossas famílias tem um longo histórico, é como se fosse um de nós – Yan fez um gesto de desprezo com a mão, fazendo uma careta.
Sim, as famílias tinham um longo histórico e não era um histórico limpo e muito menos amistoso, por culpa de Caleb obviamente.
O passado amaldiçoado de sua condição que o fizera matar aquela jovem inglesa apenas por poucos goles de sangue. Ela estava no lugar errado e na hora errada, mas Yan Yuriev jamais havia perdoado aquela ofensa, diziam que ele havia enlouquecido após a morte de Elizabeth.
O clã Yuriev nunca fora o melhor clã entre os vampiros, conhecidos por suas torturas e por suas conquistas bastante questionáveis na idade média, eles costumavam espalhar terror por onde passavam. Se a lenda de Vlad o empalador era verdadeira, ele certamente teria algum parentesco com os Yuriev. Descendiam das mesmas terras romenas e tinha os mesmos gostos mórbidos, a mesma crueldade com suas vítimas. Além disso eram um clã extremamente fechado, um Yuriev se unia somente a outro Yuriev então era comum o casamento consanguíneo e inúmeros incestos, não que isso importasse na sociedade vampírica. Manter o sangue puro de um clã era algo importante, a própria família de Caleb fazia isso, porém eles se uniam a outros clãs, mesmo que somente aos mais puros como a família Magnus e a família Salazar. Afinal não era a noiva de Caleb uma Salazar? De qualquer modo, o que importava era que Yan enlouquecera com a notícia da morte de sua humana. Ele realmente estava disposto a lutar por ela, mesmo contra seu clã e já havia enfrentado o poderoso patriarca inúmeras vezes. Eleazar estava disposto a matar Yan se ele desse continuidade a seu plano e de certo modo ficou aliviado quando soube que alguém dera fim a vida daquela humana estúpida.
A questão era que ao contrário do pai, Yan não sentira nenhum alívio com a morte de Elizabeth, ao contrário, ele simplesmente se transformara. Depressivo, passava os dias trancado em seu quarto onde um caixão de vidro guardava sua amada. Ele havia injetado seu veneno nas veias dela, assim o corpo jamais se decomporia, mesmo os vermes da morte não eram capazes com o veneno da maldição de Uriel sobre Caim.
Certa noite, cansado de ver seu primogênito de sangue mais nobre definhando a cada noite por conta de um simples cadáver, Eleazar entrou no quarto de Yan e então o arrancou de cima do caixão, jogando-o na parede oposta.
“Fique” – a voz cheia da indução irrevogável de alguém muito superior fez Yan estacar, os olhos arregalados enquanto ele fincava as unhas na parede, antevendo o que o pai faria.
“Por favor papa” – ele pedira, mas os olhos do outro vampiro se ascenderam em vermelho e Yan se encolheu mais contra as pedras da parede de seu quarto. Ele ouviu um choro infantil ao longe, vacilando por um momento –“Quem és?” – ele perguntou e isso pareceu enfurecer ainda mais o pai.
“Sua irmã, sequer notou que mais um de nós nasceria para essa vida desgraçada, sequer notou que sua verdadeira prometida estava por vir... Maldita humana!” – Eleazar tocou a mão sobre a tampa de vidro do caixão e esta derreteu como plástico no fogo.
“Não, eu lhe imploro” – Yan tentou se mover, mas seu corpo parecia fixo, preso à parede.
“Vou lhe ensinar a nunca implorar por um humano” – Eleazar disse e então logo sua mão tocava o rosto pálido e frio do cadáver, apele tomando um tom corado, como se a morta ganhasse vida, mas logo o tom corado passou para cinza e a pele parecia rachar como porcelana. Menos de um segundo foi necessário para que a morta se transformasse num fóssil congelado.
Yan gritou enfurecido e então avançou contra Eleazar, os olhos vermelhos, as mãos em garras. O patriarca da família Yuriev apenas permaneceu imóvel, erguendo então o braço quando seu filho estava próximo o suficiente e o agarrando pela garganta, a mão esmagando a traqueia e o jogando no chão em seguida.
“Criança aprenda a nunca desafiar aquele que te criou, essa foi a última vez que revogou minhas ordens” – Eleazar se abaixou e então fincou a mão em forma de garra nas feridas da garganta, erguendo Yan e o arrastando para fora daquele quarto.
Selena apareceu à porta do quarto que ocupava com Eleazar, trazendo um pequeno embrulho nos braços. Ela olhou para o filho por um momento, seus olhos demonstrando compaixão, mas isso logo sumiu e a matriarca dos Yuriev se tornou uma estátua, tão fria quanto o gelo que controlava, onde havia cerrado todos seus sentimentos há muitos anos. Ela encarava ao filho com seus olhos azulados como se ele fosse qualquer um a ser torturado por Eleazar e ele teve certeza de que se seu pai questionasse à sua mãe para acompanhá-lo, ela o faria, ela torturaria o próprio filho.
Dizem que Eleazar levou Yan para o porão e de lá para uma espécie de cave que ia muitos metros abaixo do próprio porão, num acesso difícil por uma escada em espiral. Era um lugar abjeto com cheiro de morte, as paredes recobertas de salitre e de ossadas humanas. Algumas correntes pendiam do teto e outras das próprias paredes e era possível ouvir os ratos roendo os restos mortais de algumas das vítimas daquele clã maldito.
Eleazar guiou Yan para o fundo daquele local, passando pelos objetos que ele bem conhecia e que ele muitas vezes usara com as humanas que conseguia arrastar para à mansão. O rack ainda cheirava a sangue fresco, assim como a dama de ferro, mas ele sabia que nenhum humano havia sido torturado ali recentemente, havia sido uma presa muito mais valiosa, com um sangue muito mais valioso, por fim Yan foi lançado contra a parede do fundo de uma câmara onde bateu com o rosto contra uma pilha de corpos ouvindo o rastejar dos vermes e o zunir das moscas que se moveram quando ele caiu. Os olhos dele se ascenderam, as garras fincaram em algo que se desfez com o leve toque dele, tão podre já estava, fazendo alguns vermes se precipitarem por sua mão e por seu fino pijama de seda azul.
- Não gosta de velar mortos? – a voz de Eleazar se fez ouvir enquanto ele mexia em uma caixa, como se buscasse algo.
Yan não respondeu, ele se concentrava em inalar o menos possível aquele ar contaminado e a encarar o menos possível seu pai. Embora soubesse que Eleazar sentia a raiva que emanava dele, Yan não queria piorar sua situação, porém sua curiosidade foi grande quando ele ouviu o folhear de um livro e ouviu a voz de Eleazar começar a citar uma história, um conto de um escritor pouco conhecido na época. Falava de um príncipe confiante e feliz, designado de Príncipe Próspero que ao ver seu reino abatido por uma doença cruel e mortal, trancou-se numa abadia com mil súditos e então julgou estar livre enquanto todos a volta morriam. Uma noite porém, a morte escarlate, como era conhecido o mal, adentrou-se pelas janelas de seu salão e em meio a um baile de máscaras revelou-se ao príncipe, matando-o e matando aos demais.
- Sabe o que isso quer dizer Yan? Que não importa o que os humanos façam ou o quanto se escondam, eles não podem fugir da morte, pois ela os caça e os aniquila. É o destino deles e não deve ser interferido. Nós somos a morte e eles são nossas presas, nada escapa ao destino Yan e aqueles que tentam fazê-lo – ele se aproximou do filho, jogando o livro para trás, fazendo-o pousar com um baque surdo dentro da caixa novamente – São punidos... da pior forma possível – ele sussurrou, erguendo Yan novamente e o prendendo na parede após força-lo contra uma estaca.
Yan não pode deixar de rir, Eleazar pretendia o que com aquilo? Mas seu sorriso logo sumiu quando ele viu o que estava sobre a mesa diante de si. Ele rosnou alto, deixando as presas a mostra, o corpo sem movimento algum do pescoço para baixo.
- Surpreso? – Eleazar perguntou calmamente – Vejo que me subestima – O vampiro sorriu de lado enquanto tirava algo de uma das gavetas um chicote com três pontas, chamado flagelo.